O PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
MILITARES DO BRASIL (ANMB) DIZ QUE A CATEGORIA SE SENTIU TRAÍDA POR BOLSONARO
COM PROJETO, APROVADO NO CONGRESSO, SOBRE APOSENTADORIAS E REAJUSTES
Que
o clã Bolsonaro flerta com o autoritarismo ninguém mais tem dúvida. Mas se
decidisse fechar qualquer um dos outros dois poderes da República, como sugeriu
o deputado Eduardo Bolsonaro, o filho 03, o presidente Jair Bolsonaro teria,
ele mesmo, de dirigir o jipe: “Cabos e soldados estão com raiva do presidente e
dos oficiais”, disse em entrevista à Agência Pública o cabo reformado do
Exército Marcelo Machado, presidente da Associação Nacional dos Militares do
Brasil (ANMB).
A
rebelião em curso dos praças e graduados foi provocada pelo projeto, de autoria
do governo, aprovado no Congresso na semana passada que reestrutura as
carreiras e aposentadorias militares – e que privilegia oficiais em detrimento
daqueles de baixa patente. Soldados, cabos, sargentos e subtenentes representam
nas Forças Armadas 82% do efetivo de 325 mil militares da ativa e a mesma porcentagem
dos 700 mil veteranos e pensionistas. Eles votaram em massa no candidato Jair
Bolsonaro em 2018, mas agora, arrependidos, chamam o projeto de “PL da traição”
e anunciam, sem reservas, que as relações políticas com a família Bolsonaro
estão definitivamente rompidas.
“O
presidente só está na política por ter defendido, ainda como capitão, a pauta
de melhores salários para cabos e sargentos. Desde que ele foi para a reserva,
os praças sempre votaram nele e na família Bolsonaro. Agora ele deu uma punhalada
fatal nos praças pelas costas”, compara Machado, que não vê chances de voltar a
apoiar o clã Bolsonaro. “As categorias que representam as bases militares estão
decepcionadas. É como uma louça que se quebra. Não há conserto”, diz.
Nos
embates que movimentaram a Comissão Especial da Câmara dos Deputados durante
oito meses, onde o polêmico PL foi aprovado de forma terminativa, os familiares
dos praças não conseguiram apoio dos parlamentares ligados ao governo, o que
determinou que a matéria, sem passar pelo plenário, fosse enviada diretamente
para o Senado. O texto foi aprovado na íntegra na Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional do Senado na terça-feira passada e de forma
simbólica na quarta (4/12) pelo plenário, numa sessão que durou menos de meia
hora. Se for sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, os militares terão
agora que permanecer 35 anos na ativa – cinco a mais do que pelas regras
anteriores – para se aposentarem, entre outras mudanças. O que gerou a maior
revolta nos praças, porém, foi a desigualdade no reajuste dos salários até
2022: a lei prevê cerca de 45% de aumento nos salários dos oficiais e apenas 4%
para as carreiras de baixa patente.
Em
dois adicionais, o de disponibilidade e de habilitação, que serão incorporados
ao soldo, os oficiais ficam, respectivamente, com aumento de 32% e 73%,
enquanto os de baixa patente, com 5% e 12%. Militares – incluídos aí policiais
militares estaduais e bombeiros – irão para a reserva remunerada com o salário
e reajustes da ativa. Passam a ter direito a outros benefícios, como auxílios
de representação, transporte e ajuda de custo. A lei cria a alternativa de
evolução na carreira para melhorar a remuneração por meio de estudos, mas só
para quem está na ativa. O governo espera um superávit de R$ 2,29 bilhões até
2022 e de R$ 10,45 bilhões em dez anos. A economia seria de R$ 97,3 bilhões,
mas o novo plano de carreira consumiu R$ 86,85 bilhões, bem mais flexível que a
reforma da Previdência dos aposentados civis.
Duas
vozes praticamente solitárias nos debates na Câmara, os deputados Marcelo
Freixo e Glauber Braga, ambos do Psol do Rio de Janeiro, mesmo com críticas de
colegas da esquerda, assumiram a defesa dos praças como causa de trabalhador.
Embora derrotados na Comissão Especial, quebraram o preconceito histórico
recíproco entre esquerda e militares num tempo de polarização política.
“Por
incrível que pareça, foi de dois deputados da esquerda que recebemos apoio”,
reconhece Marcelo Machado. O líder dos praças diz que o debate sobre o PL 1.645
provocou uma reação com a qual o governo não contava. Nos debates na Comissão
Especial e pelas redes sociais, mulheres militares da reserva encabeçaram um
movimento de contestação ao governo e à cúpula militar, acusados de virar as
costas às baixas patentes.
Num
dos tantos posts publicados no Facebook criticando o presidente, a palavra
mito, destacada em negrito na vertical, serve para carimbar Bolsonaro, na linha
horizontal, de “mentiroso, injusto, traidor e omisso”. Em sua página, o
presidente da ANMB postou o famoso artigo do então capitão do Exército à
revista Veja, em 1973 (“Os salários estão baixos”), em que Bolsonaro defende
cabos e sargentos, para demonstrar o quanto ele mudou ao chegar ao poder. “É
surpreendente sua postura atual”, escreveu Machado, debitando ao presidente a
responsabilidade pelas consequências do projeto na caserna.
O
dirigente informa ter ouvido de fontes do governo e de oficiais da ativa
pedidos para que segurasse o ímpeto dos praças para evitar divisão nas Forças
Armadas. Machado respondeu que os fatores que podem resultar na divisão no
estamento militar, com consequência ainda imprevisíveis, é a mudança de postura
de Bolsonaro em relação à tropa. O Ministério da Defesa chegou a publicar uma
nota oficial nas redes sociais em que alertava que militares são proibidos de
se reunir em associações, o que foi visto pelas entidades como ameaça de
perseguição.
O
senador Izalci Lucas (PSDB-DF), vice-líder do governo, percebeu possíveis
estragos. Ele admitiu que o texto tem distorções e, como está, é injusto com as
categorias de baixa patente, mas acabou sendo convencido pela área econômica do
governo de que não seria possível mexer no projeto agora. Também concorda que
Bolsonaro mudou de posição.
“Como
deputado, ele votou contra todas as reformas. Agora é o mundo real. Ele está no
Executivo”, disse em entrevista à Pública. Pressionado pela área econômica,
Bolsonaro quer sancionar o projeto até o fim do ano. Segundo Izalci, uma
comissão a ser criada em janeiro discutirá com o governo um pacote de medidas
para corrigir as distorções por meio de decreto ou novo projeto de lei. O que é
visto com ceticismo pelos militares de baixa patente, já que as mudanças
poderiam ser feitas no próprio PL 1.645 por meio de emendas que, no entanto,
foram rejeitadas pelos apoiadores do governo.
Machado
votou em Bolsonaro, mas lembra que, longe da hierarquia e da disciplina dos
quartéis, cabos e sargentos têm posições históricas desvinculadas da direita.
“Sempre estivemos à esquerda. Basta ver as origens dos fatos políticos que
deram no golpe em 1964. A revolta dos sargentos, em 1963, em Brasília, foi o
primeiro dos episódios que deflagraram o movimento”, lembra o presidente da
ANMB. Machado se refere à rebelião que eclodiu na madrugada de 12 de setembro
de 1963, em Brasília, em reação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF),
tornando inelegíveis os graduados da Marinha e Aeronáutica que haviam disputado
(e vencido) eleições legislativas. O movimento foi sufocado no mesmo dia pelo
Exército, com a prisão dos revoltosos, mas vários líderes engrossariam a
fileira da esquerda, alguns deles entrando na luta armada.
A
mudança de comportamento dos praças não significa, pelo menos por enquanto,
quebra de hierarquia e disciplina, mas coloca dúvida sobre a força que Bolsonaro
insinua ter nas Forças Armadas. Também as manifestações do presidente, seus
filhos, ministros e seus apoiadores de grupos de extrema direita – o tema da
vez é o desejo de reeditar o AI-5 – parecem não encontrar ressonância nos
quartéis.
Ruptura institucional
“Bolsonaro
aposta na ruptura institucional”, avalia o coronel reformado da Aeronáutica e
ex-piloto de caça Mauro Rogério, que preside o Movimento Brasil Futuro (MBF),
entidade que reúne de militares da reserva a profissionais liberais de centro.
Ligado ao PTB e estudioso das questões militares, Rogério acha que, se tivesse
apoio, o presidente não titubearia em dar um golpe. “Ele não avança o sinal
porque não teria apoio dos setores que exercem poder de influência nas Forças
Armadas e têm um compromisso forte com a Constituição e com a democracia”,
afirma Rogério. Para ele, é zero a chance de apoio nas Forças Armadas a uma
eventual tentativa de aventura autoritária.
O
coronel diz que, embora tenha preenchido um terço dos cargos de primeiro
escalão com oficiais de alta patente, Bolsonaro não é visto na caserna como um
líder nem exerce na tropa a influência que passa ao senso comum. “Bolsonaro não
terminou a carreira militar, portanto não é uma referência. Mas foi o único
político que abraçou o movimento de 1964 e defendeu o regime nos últimos 30
anos. A cúpula militar viu essa postura com simpatia e o absorveu. Mas isso não
implica em concordar com medidas fora da Constituição”, afirma o coronel.
Na
avaliação de Mauro Rogério, as sucessivas ameaças de adoção de medidas de
exceção fazem parte do jogo de xadrez que Bolsonaro e seu entorno operam
estrategicamente, como método de gerar tensão na política. Quem conhece o
funcionamento dos poderes e o espírito militar, segundo ele, não se assusta com
retórica radical.
“A
pancada na mesa espanta civis. Mas há ainda muita gordura democrática a ser
queimada e uma linha que não pode ser ultrapassada”, diz, alertando que, numa
eventual tentativa de guinada autoritária, Bolsonaro se colocaria numa
encruzilhada. “Tanque não dá marcha à ré”, diz o militar, que acredita que, em
uma hipótese remotíssima de intervenção, o governo cairia e novas eleições
seriam convocadas, conforme determina a Constituição.
O Psol e os militares de baixa patente
Enquanto
os bolsonaristas se envolviam numa guerra interna pelo comando do PSL e a
formação de um novo partido, o Psol abriu os braços para as baixas patentes das
Forças Armadas. A derrota na Comissão Especial teve um sabor de vitória quando
os dirigentes das entidades reagiram com gritos de “traíra” contra Bolsonaro.
“Entramos
porque a causa era justa. Os praças nem foram chamados para discutir. O projeto
tratou dos oficiais e ignorou quem está na base da pirâmide militar e nem foi
chamado para participar das discussões. Se tem divisão nas Forças Armadas ou
quebra de hierarquia, a responsabilidade é do governo”, disse o deputado
Glauber Braga.
“Sofremos
críticas de companheiros da esquerda, mas tomamos o lado certo e quebramos um
preconceito histórico resultado de uma ditadura de 21 anos. Praças e graduados
merecem a mesma defesa que os trabalhadores civis”, afirmou o deputado Marcelo
Freixo, numa transmissão pela internet. Glauber Braga foi mais pragmático,
afirmando que era necessário disputar uma das bases mais importantes do bolsonarismo.
“Entramos na luta também por questão de justiça. Os militares foram
prejudicados pelo governo”, afirmou Glauber Braga à Pública. Ele participou da
malograda mobilização no Senado para tentar corrigir o texto.
“O
que nós queremos é ajuda”, defendeu o cabo Marcelo Machado. Na semana passada,
ele estava aberto ao diálogo com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
deixou a cadeia afirmando que quer conversar com os militares. “Estávamos em
condições financeiras infinitamente melhores durante o governo Lula. Ele foi o
único que deu algum reajuste”, reconhece o cabo. “Os praças de hoje têm maior
nível de instrução, consciência política mais forte e, apesar da forte
doutrinação imposta dentro dos quartéis, mais afinidade com as pautas da
esquerda”, garante.
Glauber
Braga avalia que, ao se afastar cada vez mais das forças de segurança
institucionais, a tendência do bolsonarismo é disputar uma base social
agenciando milicianos e outros grupos paramilitares. Segundo o deputado, esse
caminho está implícito na iniciativa de Olavo de Carvalho, guru da família
Bolsonaro, que tem dado cursos gratuitos a policiais e militares (inativos e
ativos), cuja finalidade, conforme Braga, seria dar suporte ao bolsonarismo.
Ele diz que a insistência com que a direita defende medidas extremas indica um
ensaio de autoritarismo. “O Bolsonaro vai fazendo testes para ver o que cola”,
afirma.
Fonte: Agência Pública –
Vasconcelo Quadros
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